“Raimundo Nonato” é um convite à reinvenção de um país que se perdeu na brutalidade e na ausência de caráter.
Luiz Eduardo Soares, intelectual respeitado internacionalmente, tornou se uma referência no Brasil em qualquer debate sobre segurança pública por conta da profundidade de suas reflexões e pela sua capacidade como gestor. Ideias como o Sistema Único de Segurança Pública (SUSP), a reforma do modelo de polícia ou o projeto da “Delegacia Legal”, para citar apenas três temas relevantes, devem muito a sua ousadia e capacidade crítica. Quem acompanha a trajetória do antropólogo fluminense sabe também da delicadeza de seu texto que já rendeu obras maravilhosas como “Elite da Tropa”, “Espírito Santo”, “Rio de Janeiro: histórias de vida e morte” e “Tudo ou Nada”, entre tantos outros. Faz muito que leio tudo o que Luiz Eduardo escreve com o prazer de ser sempre surpreendido e de aprender a cada espanto. Eis que surge “Enquanto Anoitece” (Todavia, 155 p.), seu mais recente romance, lançado ao final de 2023 e que acabo de ler.
O texto se constrói em torno da história de Raimundo Nonato, um jovem jagunço no sertão nordestino que, na década de 70, em plena ditadura militar, se vê na contingência de ganhar a vida como pistoleiro. Nonato, entretanto, abandona sua vida criminosa, se apaixona por Linda, constitui família e vem para o Rio de Janeiro, residindo em Rio das Pedras e trabalhando como porteiro de um prédio na avenida Delfin Moreira, no Leblon. Aos 70 anos, sua vida irá, desgraçadamente, se cruzar com as milícias e com a corrupção onipresente.
O nome do personagem central tem muito simbolismo, não apenas por ser comum no Nordeste, mas por sua origem. Raimundo Nonato é um santo católico, patrono das parteiras e dos obstetras. A alcunha “nonato” significa “não nascido”, porque ele foi retirado do ventre de sua mãe já morta, algo que equivalia a um milagre no século XIII, sua época. Esse santo lutou contra a escravidão e foi por isso, preso na Argélia, onde converteu presos e guardas. De alguma forma, o personagem de Luiz Eduardo é também não nascido, porque retirado a fórceps do sertão, após ter caído nas mãos dos militares e ser seviciado pelos torturadores. É essa experiência que o lança no mundo para as suas reinvenções.
A trajetória do Nonato de “Enquanto Anoitece” nos oferece uma síntese impactante da história recente do Brasil, contada a partir dos encontros e desencontros de um migrante situado em várias das periferias do mundo. Mas Nonato é, para além de sua maldição, da dor que lhe foi reservada e dos segredos que precisa guardar, um trabalhador dedicado e um pai carinhoso, orgulhoso de Luiz, seu filho, que acaba de passar no vestibular para Medicina na Universidade Federal e que dirige um grupo de teatro na comunidade. O personagem é também alguém movido por uma ideia de justiça, que é como uma febre que não arrefece e que o impulsiona em busca do que é o certo.
Raimundo Nonato é o melhor do Brasil, em sua simplicidade e força. É também um convite à reinvenção de um país que se perdeu na brutalidade e na ausência de caráter. Há algo de angustiante no livro de Luiz Eduardo, é certo, porque, em um deslocamento de cinco décadas, Raimundo Nonato habita a injustiça, como experiência e culpa. É parte dela como vítima e como autor e, por isso, se revolta sem que nada, nesse lapso, altere a injustiça específica em que muitos outros Raimundos como ele habitam. Ao mesmo tempo, a história dá conta de uma luta real, marcada pela criatividade e pela resiliência que acompanha milhões de brasileiros e brasileiras, o que comove e anima. É possível mudar, percebemos. A reinvenção dos sujeitos é obra diária, tão dura e complexa quanto a reconstrução de uma sociedade. Para essa tarefa, “Enquanto Anoitece” nos brinda com beleza e coragem.
Texto publicado originalmente no Jornal Sul21, em 30 de maio de 2024.