Nota sobre o motim do Presídio Central de 1994

Foto: Maia Rubim/Sul21

Passados 30 anos do episódio, algumas matérias da imprensa gaúcha trataram do tema, uma delas, com visão enviesada e preconceituosa

A primeira metade dos anos 90 foi marcada por várias rebeliões no sistema penitenciário do Rio Grande do Sul. Na época, na condição de deputado estadual e presidente da Comissão de Cidadania e Direitos Humanos (CCDH) da Assembleia Legislativa (ALRS), eu já havia acompanhado muitas ocorrências em diferentes casas prisionais do estado e estruturado um trabalho intenso de recebimento de denúncias de violações na CCDH, em muitas áreas, recebendo milhares de vítimas a cada ano. Esse trabalho teve grande repercussão, especialmente a partir do lançamento das quatro primeiras edições do “Relatório Azul”, projeto pioneiro no Brasil de monitoramento de garantias e violações aos Direitos Humanos. Pela presença constante nos presídios gaúchos em inspeções sem prévio aviso, pelas denúncias que fizemos que envolviam casos de tortura e de toda sorte de abusos cometidos contra pessoas presas e seus familiares, incluindo a humilhação das revistas íntimas, a CCDH passou a receber a demanda reprimida por anos de negligência do Poder Público.

Quando, em junho de 1994, iniciou o motim no Central, os amotinados exigiram a minha presença e a do juiz da Vara de Execuções na época, o saudoso dr. Marco Antônio Bandeira Scapini, um dos mais dignos e corajosos magistrados que o RS já teve. Eu estava, no início do motim, em Brasília, com a comissão parlamentar que discutia a possibilidade da instalação da GM no RS com o presidente Itamar Franco. Tão logo soube do que estava ocorrendo, ficou evidente a gravidade do quadro e decidi retornar imediatamente à Porto Alegre. Do aeroporto, fui direto ao Presídio, assumindo o papel que me cabia; não porque gostasse de estar lá, ou mesmo tivesse obrigação funcional de fazê-lo, mas porque esse era o meu dever.

Passados 30 anos do episódio, algumas matérias da imprensa gaúcha trataram do tema. Em uma delas, feita pelo jornal Correio do Povo, se produziu visão enviesada e preconceituosa a respeito dos fatos, com a promoção de uma única versão, a mais deturpada possível, sobre os acontecimentos. Encaminhei ao jornal uma nota, sugerindo que ela fosse publicada como artigo, o que, lamentavelmente, não foi aceito. Agradeço muito ao Sul 21, a chance de torná-la conhecida pelos leitores. A seguir, a nota:

Na edição do dia 07 de junho, o jornal Correio do Povo trouxe matéria de capa alusiva aos 30 anos do Motim do Presídio Central, o mais grave já ocorrido no RS, que colocou em jogo a vida de 27 servidores penitenciários tomados como reféns. Para tratar do problema, o então governador Collares criou uma Comissão de gerenciamento de crise, com integrantes dos Três Poderes. Dessa Comissão, o Correio ouviu apenas o delegado Alexandre Viera, o único membro que não concordou com a estratégia de negociação, embora em nenhum momento tenha apresentado caminho alternativo.

Na matéria, se afirmou que a Brigada e a Polícia Civil foram “voto vencido” na decisão por negociar, o que é falso. Graças à posição técnica do então comandante do Choque da BM, coronel René Lacerda, aliás, a comissão soube que eventual ocupação à força do espaço onde estavam amotinados, reféns e pacientes do hospital resultaria em dezenas de mortes, sem possibilidade de identificar quem era amotinado, refém ou paciente. Esse relato foi decisivo para que os membros da comissão, eu entre eles, firmassem posição pela negociação, única forma de evitar que a crise se transformasse em um massacre.

O delegado disse na matéria que “não negocia com bandido”, uma bravata que se opõe à conduta profissional de polícia, como o demonstram os esforços das equipes policiais especializadas em negociar crises com reféns em todo o mundo. Para se ter uma ideia, o departamento de polícia de Nova Iorque possui uma equipe especializada de “negociação com bandidos” chamado “NYPD Hostage Negotiation Team” que, apenas em 2012, negociou 400 crises com reféns. Mais de uma por dia!

Os fatos ocorridos nas ruas de Porto Alegre com a perseguição dos amotinados e disparos efetuados em via pública contra os carros em que estavam reféns, decisão que feriu gravemente o diretor do Hospital Penitenciário (tornando-o paraplégico) e seu filho e matou um policial, nenhum deles atingido pelos amotinados, evidencia muito bem os resultados que se têm colhido no Brasil quando se opta pela força ao invés da inteligência.

Texto publicado originalmente no Jornal Sul21, em 20 de julho de 2024.

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